Asli Berktay ao centro |
Matéria do blog : miltonribeiro.sul21.com.br
Hoje
acordei com uma recordação vívida de algo ocorrido há mais de 20 anos. Eu
deveria ter 12 ou 13 acho, e estava com a minha avó paterna durante o verão na
casa de férias dela em Bodrum. Sim, Bodrum, aquele balneário onde foi
encontrado o corpo de Aylan Kurdî. Eu passava umas três semanas com ela cada
verão, e o nosso ritmo era quase sempre o mesmo, alternando-se entre o mar, a
comida, e longas horas de leitura. Minha avó e o marido dela, o meu avô nunca
conheci, eram comunistas ardentes que espalharam uma forte disciplina comunista
a todas as partes das suas vidas, e sobretudo na educação dos filhos. Meu pai
pegou bastante disso também e eu passei pelas consequências. Já não sobrava
muito ao nascimento da minha irmã quando eu já tinha quase 15 anos, e ela só
conheceu a nossa avó no final da vida dela, quando ela já estava condenada à
cama. Mas eu sim peguei a minha dose dessa disciplina.
Bom. Então, essas longas
horas de leitura não eram livres, claro. Eu sempre tinha listas, livros que
precisava ler para completar a minha educação. Naquele verão, a necessidade que
via a minha avó era mais forte ainda, pois aquela Asli adolescente tinha
começado de ler histórias de horror e tal, assim como outras coisas que a minha
avó considerava de baixíssima qualidade. Então, ela decidiu que aquele verão ia
ser de literatura russa. Com 12 anos, eu já tinha lido os “mais clássicos” para
assim dizer: Tolstoy, Dostoyevski, Pushkin, Pasternak. Os textos integrais
claro, o oposto teria sido inimaginável. Lembro muito bem que após ter
terminado Doutor Jivago, as únicas imagens que ficaram na minha mente eram de
frio e um monte de gente tomando vodka. Quando não tinha vodka, eles bebiam
álcool isopropílico. Vá entender o sentido que faz de dar um livro desses a uma
menina de 11 anos!!
Então
naquele verão a minha educação de literatura russa era para ser completada.
Começou por Chekhov que eu gostei bastante, e incluiu uma tortura demorada dos
quatro volumes de And Quiet Flows The Don (para
nós, O Don Silencioso) de Sholokhov. Não faço
ideia de como foi traduzido ao português. E uma vez parado o devagar e difícil
fluxo do Rio Don, chegou a hora de Lermontov. Naquela hora, a menina de 12 ou
13 anos já estava de saco cheio mesmo. E Lermontov chegou com umas imagens horrorosas
de cossacos torturados, um com a orelha cortada por aqui, outro sem língua por
ai. Violência por todas partes, sangue correndo em todas as direções. Já era a
hora de uma conversa séria com a minha avó. Então me preparei, aperfeiçoei o
argumento de “se você não quer que eu leia livros de crime por causa da
violência e o horror, o quê será isso” e a enfrentei. Fiz um belo discurso de
uns vinte minutos, fiquei satisfeita, achando-me muito convincente.
A minha avó ouviu tudo, me
olhou por uns minutos, sorriu e foi procurar um dos meus livros de crime/horror
de baixa qualidade. Disse que o tinha trazido com ela para quando esse momento
chegar. Ao me passar o livro, ela afirmou que ia chegar o dia em que eu ia
saber diferenciar entre horror de alta e de baixa qualidade. Ela queria, pelo
menos, ter-me apresentado a essa primeira categoria. Também, ela sabia que eu
sempre ia gostar da segunda categoria também, que isso fazia parte da minha
natureza. E que eu sempre ia ser uma pessoa diversificada, e muito dividida.
Mas a responsabilidade dela era me apresentar o padrão de qualidade, para eu
logo poder saber quando lia merda, assistia merda, ou fazia merda, que aquilo
era merda mesmo. Claro que para ela, o que era “merda” não estava aberto a
discussão, ela sabia o que era merda e o que não. E mulher fina que ela era,
ela não disse merda, mas já sabia que a expressão que eu ia usar um dia ia ser
essa. Concordou que merecia um descanso, então me deixou ler merda à vontade
por um tempo. Lembro que, depois desses dias, voltei para Lermontov e acabei de
ler os três livros que tínhamos trazido à praia. As únicas imagens que
realmente ficaram comigo são ainda de cossacos torturados e de paisagens de
desolação. A saudade que sinto pela minha avó, por outro lado, é enorme, e
cheia de imagens cada vez mais vivas…
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