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Família tipo margarina ou quase isso...


O badalar do sino da igreja chamava os fieis para o início da primeira missa do dia. Algumas beatas apertavam os passos em frente à catedral, tentando não se atrasar. Acho que ninguém me viu, pensei. Estava ainda escuro. Recolhi minhas coisas e fui procurar uma padaria para tomar café.  

 Eu não quero que entre! Se quiser pedir alguma coisa, espere do lado de fora, você entendeu?

Levantei o polegar e fiz um sinal de positivo. Era assim que eu me comunicava com meus conterrâneos porto alegrenses (por gestos ). Não que eu me importasse, estava acostumado com aquele tipo de tratamento. Não era difícil perceber, quando a minha presença incomodava. Era preciso somente interpretar o que o mundo me dizia.

Enquanto espero do lado de fora da padaria, fiquei prestando atenção ao noticiário, numa televisão instalada detrás do balcão. No intervalo das tragédias cotidianas (que não são poucas), entra uma propaganda de margarina. Acho que desde que o mundo é mundo, propaganda de margarina é tudo igual. Há sempre uma família feliz, mesa farta e, é claro, um pote de margarina. O pai lê jornal, a mãe faz carinho nos filhos e todos sorriem. Estão indiscutivelmente bem-humorados. Então, trocam olhares complacentes, enquanto a mãe desliza a espátula cheia de margarina num pão bem quentinho. Em seguida, ela morde a fatia do pão, proferindo um melodioso: "Hum, delícia!". Assim começa o dia para uma família de comercial de margarina, ou melhor, a família perfeita que nunca se derrete.

Gostaria de saber há quantos anos estes  comerciais de margarina  povoam o imaginário das famílias –, ditas normais. E o mais interessante é que o cenário familiar apresentado nunca muda. Se não, vejamos: “Um lindo dia ensolarado, uma casa ampla com cortinas esvoaçantes, pássaros cantando e flores espalhadas pelo jardim”.

E a mesa do café da manhã? Frutas, leite, sucos, chás, pães, queijos, frios, torradas, croissants, geléias, iogurtes, cereais, patês, biscoitinhos, bolos... E a estrela do comercial   a margarina.

Quanto à família, nem se fala. Todos acordam satisfeitos às seis horas da manhã, já maravilhados com o sol e definitivamente felizes. A esposa geralmente caucasiana, e de cabelos loiros, serve o café. O marido bem humorado dá um: Bom dia!Como se não os vissem há décadas.  E os filhos? Todos alegres e saudáveis...  Sem falar no cão, geralmente de pedigree que passa latindo e correndo pela casa - brincalhão, de pelos macios e cheio de vitalidade.

***

Um senhor alto, magro, de barba, cabelos brancos e aparentando estar bastante cansado da vida, agachasse ao meu lado, enrolando um cigarro de palha. Não é de muita conversa. E assim permanecemos, ele chupando o cigarro e eu assistindo ao noticiário.  

Dentro da padaria, alguns fregueses contumazes gritavam, exigiam prioridade no pedido, reclamavam da hora, do café amargo, das broas frias e do pão, pouco sovado. Logo quebrado por um silêncio tibetano pela imperativa chegada de dois policiais, que faziam a ronda no bairro.

Enquanto esperávamos do lado de fora, como se o nosso dinheiro fosse de uma casta inferior, o canal de televisão reprisava o comercial da família feliz. Agora, com mais calma, notei que o modelo idealizado pela propaganda é totalmente fora da realidade brasileira. Não que não se deva desejar ter uma família assim. Longe disso! Todos nós temos sonhos. O que eu quero dizer é que pelo menos, se crie um modelo compatível com a realidade do lado de baixo do equador. E pelo jeito não sou o único a pensar deste jeito. O senhor magro e de barba, que até então pitava placidamente seu cigarro, esboçou um sorriso irônico ao ver o comercial. Acho que compartilhamos da mesma opinião, com a diferença de que ele vivenciou isso mais na pratica do que eu.  

Uma das funcionárias da padaria vem ao nosso encontro.

Entreguei meus dois reais em moedas, e esperei que ela contasse uma por uma. (não sei por que ainda me surpreendo). Peguei o saco com pão, o café separado num copo plástico e me despedi do senhor de barba.

 De costas voltas, pude ouvir perfeitamente o comentário de uma freguesa:

“Coitado deste menino, que Deus tenha piedade da alma dele. ”disse ela.

Não sei por que as pessoas repetem frases prontas, mas são incapazes de dar uma moeda ao próximo.  Deve ser para mostrar certa resignação aos desígnios divinos. 

Enquanto caminho até meu carrinho de papelão, parado do outro lado da rua, fiquei pensando sobre a família feliz. Percebi que não gosto das campanhas publicitárias. Elas tentam colocar na cabeça das pessoas que nada dá errado em nossas vidas, que nada nos falta, que temos abundância em tudo. Como se a nossa casa estivesse sempre perfeitinha; em bondade, saúde e bem estar. Isto é o que eu não gosto, e nem acredito! As famílias margarinas são escancaradamente felizes, só publicamente – na intimidade – todas têm ajustes a fazer. Essa perfeição ofertada nos comerciais, para mim soa como falsa. É como se comprando uma simples margarina, toda felicidade do mundo pudesse estar contida dentro dela.


                                                                   ***

Sartre tem razão: " A existência precede a essência " logo, não adianta você imaginar um café da manhã, tipo margarina, com mãe, pai, filhos, cachorro, todos alegres e felizes, se perguntando como será o seu dia...Se na sua casa cada qual toma café num horário ou nem café se toma. 


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