Sempre que penso a respeito do exercício de escrever — isto é, a escrita enquanto trabalho efetivo, e não simples inspiração —, lembro-me do historiador e romancista Shelby Foote, infelizmente pouco conhecido no Brasil. Um dos aspectos surpreendentes no seu trabalho é o fato de ele jamais ter usado um computador. Na verdade, escreveu os três volumes de sua épica narrativa a respeito da Guerra Civil — The Civil War: A Narrative —, mais de 1 milhão de palavras, usando uma caneta de caligrafia, uma dip pen, que o obrigava a, sistematicamente, mergulhar a pena no tinteiro e, quando chegava ao final da página, secar a tinta com o mata-borrão.
Gosto de imaginar Foote escrevendo. Ele passava o dia inteiro de pijama — e demorou 20 anos para terminar The Civil War. Vinte anos. Dia após dia, sentado à escrivaninha, mergulhando a pena no tinteiro, obrigado a trocar de pena após certo volume de páginas, e novamente escrevendo. Um lento, concentrado e amoroso esforço. Vinte anos de trabalho solitário, pois jamais contratou uma secretária ou um assistente de pesquisa.
O amor incondicional de Foote pelo duro trabalho da escrita é, antes de tudo, a recusa da inspiração. Uma lição que os jovens escritores deveriam aprender — um esforço pelo qual ele dizia não merecer nenhum elogio, pois estava fazendo o que desejava fazer.
Em determinado trecho de sua entrevista à Paris Review, Shelby cita um trecho de Shakespeare, uma fala de Macbeth, para justificar seu amor pela escrita: “O trabalho em que sentimos prazer, cura a pena que causa”. Reinserida em seu contexto, a frase surge carregada de ironia, pois Macbeth diz isso depois de passar uma noite movimentada, na qual matou o rei, e ser obrigado a acordar antes da aurora para receber Macduff, que, enquanto é levado ao cômodo do soberano, observa, de maneira gentil: “Sei que para vós é um agradável incômodo, mas, mesmo assim, é um incômodo”, certamente percebendo o cansaço, as olheiras de Macbeth. Ao que este responde com a fala sobre o trabalho.
Mas Foote não está sendo irônico. Ele descontextualiza a frase. E, logo a seguir, insiste: “Não há melhor sensação no mundo do que colocar sua cabeça no travesseiro à noite, ansioso para se levantar de manhã e retornar ao trabalho. Essa é a verdadeira felicidade”.
É claro que ele certamente teve, naqueles vinte anos, dias difíceis. Muitas vezes, Shelby Foote poderia ter repetido as palavras de Flaubert numa de suas cartas a Louise Colet: “Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem”.
O EXERCÍCIO DE ESCREVER: ONDE ESTÁ A FELICIDADE?
Hoje, quando lemos o resultado das angústias de Flaubert, ou quando imaginamos os solitários vinte anos de Foote, perguntamos qual o motivo de terem se dedicado a um trabalho que, despido de idealismos, é como qualquer outro trabalho — ou seja, não parece divertido ou prazeroso.
De fato, como já escrevi certa vez, para um tempo como o nosso, em que o hedonismo se encontra no substrato de quase todas as decisões, é difícil compreender a dedicação desses homens.
Mas é difícil por uma simples razão: não penetramos na essência das suas escolhas, permanecemos na superfície da tarefa diária — e só com muita atenção acordamos para a verdade: o prazer, da forma como o entendemos, é o que menos importa para esses escritores. E não importa porque, ao contrário do que nos ensinaram, a felicidade, como dizia Ortega y Gasset, não é apenas um prazer, mas consiste sempre “numa atuação, numa energia e num esforço”.
Cada página de Shelby Foote, cada linha, durante vinte longos anos, foi uma vitória sobre as características e as limitações da sua personalidade, dos seus hábitos. Cada dia na direção da frase final foi a resposta dele às investidas da preguiça. Cada página escrita era um “sim” firme, irrestrito, ao que ele desejava ser.
É como o escritor deve pensar: o exercício de escrever, cada hora debruçado sobre um texto, é nossa resposta contra os limites físicos, as pressões familiares, os fracassos do passado, o medo do futuro, a falta de recursos — e as insuficiências do nosso meio, do nosso país, da nossa cultura.
Matéria original do professor, crítico literário e escritor Rodrigo Gurgel : rodrigogurgel.com.br
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