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Crônicas do Cotidiano - Um Conto Vietnamita.



Saigon, Vietnã do Sul, ano de 1975 ( início da guerra no Vietnã )

Milhares de vietnamitas se lançam ao mar em pequenos barcos de madeira, na esperança de serem resgatados por algum cargueiro de bandeira internacional.

Trag também conseguiu escapar do conflito, acompanhado de outros 20 vietnamitas.

Mas o destino foi cruel com Trag, e justamente na sua vez, o navio tinha bandeira verde e amarela. ( Petrobras ) 

Era feriado de carnaval, quando ele e outros vietnamitas foram levados para um abrigo da ONU, no Rio de Janeiro.  

No país do samba, futebol e carnaval, ser refugiado vietnamita, era uma péssima escolha. Por isso, quem tinha dinheiro ou parente para ajudar, não ficou! 

Trag não tinha nem uma coisa nem outra; então seguiu para São Paulo com outros exilados.

Nascer no Vietnã, sonhar com  América e morar no Brasil não era o quadro que Trag tinha pintado. Mas um dia, o vento soprou tão forte, que o pincel acabou rolando pela paleta, e se misturando a uma outra tinta, trazendo uma nova cor para a vida do vietnamita, a cor  do amor.

Não havia fronteiras para o que ele sentia, pois o amor é uma língua sem pátria.

Diferente dos demais vietnamitas, que se fecharam em pequenas comunidades, mantendo-se fiéis aos seus usos e costumes, Trag tinha motivos de sobra para desbravar terras tupiniquins.

Estudou ,trabalhou, prosperou como imigrante, fazendo com que a comunidade torcesse o nariz para sua boa sorte. Sorte esta que vinha acompanhada de muito suor e dedicação.

Trag sentia um amor leve, cheio de doçura e encantamento. Em seu país, era conhecido  como um artista talentosíssimo,  mas extremamente inconstante.

Certa ocasião, convidou a então namorada para ir ao parque de diversões. Queria lhe fazer uma surpresa. 

No alto da roda gigante, quase ao ponto de se confundirem com as estrelas, Trag a pediu  em casamento. Ela prontamente aceitou. Mas tinha um porém. Trag precisava pedir a mão da sua futura esposa para o sogro, que morava numa cidade do interior de São Paulo.

Trag não pensou duas vezes. Prontificou-se a pagar passagem, estadia e levá-los ao melhor restaurante Vietnamita da Capital. Estava ansioso por causar uma boa impressão.

No dia do “sim” da família, Trag preparou um belíssimo discurso. Colocou seu melhor terno. Se perfumou e pediu que um taxista, amigo nos dias magros, fosse buscar a família da noiva num hotel do centro. Estava tudo planejado. Bem, quase tudo... Trag não planejou receber um “não” como resposta. A família não aprovava o noivado da filha com um “chinês”.

Trag ficou arrasado. Mas não iria desistir tão facilmente. Não depois de todos aqueles anos de namoro.

Escreveu dezenas de cartas, entregou flores, caixas de bombons - na esperança que o aceitassem como genro. Afinal era um homem honesto e trabalhador.

Tanta insistência, fez com que a família da noiva a levasse de volta para o interior.

Trag estava apaixonado demais para esquecê-la. Descobriu o endereço da cidadezinha onde moravam e passou a visitá-la. 

Primeiro nos finais de semana.

Depois, durante os dias da semana.

Achando que a família da ex noiva mudaria de ideia, largou o emprego na capital, juntou suas economias e foi morar numa pensão, próximo à casa que eles viviam.

Uma vizinha zombeteira, entregou o namoro às escondidas. Foi preciso chamar a policia para persuadi-lo a ir embora. Mas, ele voltou no dia seguinte. E a policia também ! 

Trag apanhou tanto que só acordou no hospital.

Voltou para São Paulo jurado de morte.

Passou a andar pelas ruas, envolto por seus pensamentos.

Dias e mais dias, e só um pensamento em qualquer lugar. 

Alguns vietnamitas da comunidade, solidários à sua dor, tentaram convencer com o pai da moça de que Trag era um bom homem. Mas não adiantou

Trag deixou de tomar banho e se alimentar. 

Parou de falar português. Ficava irascível, agredia as pessoas em sua volta.

Num ataque de fúria, foi parar no manicômio.

Um vietnamita abastado foi chamado pela comunidade para interceder pelo jovem.

O levaram para uma clinica particular. 

Agitado, não conseguia conviver com os outros internos. Começou a causar problemas. 

A direção do hospital, não o queria mais na clinica. 

Outra intervenção da comunidade. Uma nova internação e os mesmos problemas.

A comunidade vietnamita se reuniu.Tentaram a casa de um vietnamita que era muito apegado ao amigo Trag. Eles praticamente cresceram juntos na distante Saigon.

Agora eram os vizinhos que não suportavam os delírios do vietnamita.

Consultaram uma terceira clinica. Mas pelo histórico do paciente... Só o aceitariam se ficasse dopado. E isso, a comunidade vietnamita não iria permitir. 

Telefonaram para o Cônsul em Brasília. Alguém tinha que achar uma solução. 

A resposta foi cirúrgica.  Repatriá-lo. 

Antes era preciso encontrar algum parente que estivesse vivo e disposto à aceita-lo nestas condições. Será que ainda se lembrariam do exilado ? 

 Longa espera em busca de familiares. 
Enquanto isso, Trag esperava.

O primeiro irmão respondeu que não tinha condições de recebê-lo. Era pobre e com filhos pequenos. Nem se lembrava mais do irmão mais velho. Eram exatos 30 anos de ausência. Mas ficou de conversar com os demais familiares.

As negativas não tardaram a chegar. Todos muito pobres.

E se a comunidade vietnamita no  Brasil ajudasse? Sim, com envio de dinheiro. Pelo menos por algum tempo.

Um dos irmãos aceitou. A ajuda seria bem vinda. 

Agora só faltava embarcá-lo.  E é exatamente neste ponto que eu entro na história.

Eu me lembro que de vez e outra, ele aparecia na empresa onde eu trabalhava ( Na fabrica do vietnamita abastado ) para almoçar ou quando tinham que trocá-lo de clinica. Recordo-me que o chamavam por Trag, e que ele só dizia uma única palavra em português " titio ". 

O vietnamita dono da empresa veio falar comigo. O melhor amigo do Sr Trag também. Eles queriam que eu fosse ao Vietnam prospectar fornecedores e já que eu estava indo para lá... Acho que me fiz entender.

Foram dois dias de muitas recomendações e toda uma história de vida, engolido em seco. Confesso que fiquei sem dormir na noite anterior ao embarque.

Alguns funcionários me desejaram boa sorte. ( Vai precisar, vai viajar com um maluco ).

Deram-me dois bilhetes, o Sr Trag, algumas caixas de remédios tarja preta e um pacote de cigarros.

Joguei os remédios fora. Fiquei com os cigarros.

Nosso itinerário era São Paulo-Paris/ Paris - Ho Chi Minh - Vietnam 

Em Paris, logo na alfândega tivemos problemas; O que um brasileiro e um vietnamita monossilábico fazem na cidade luz ? Turismo é que não é ... Deu trabalho resumir uma história de 30 anos em 2 minutos.

Ficamos oito horas até conexão para o Vietnam. Preferi não sair do saguão de embarque, por medo que algo pudesse ocontecer. 

O que fizemos durante este longo período  ? Tomávamos  Coca - Cola, ele fumava e assistíamos o vai e vem das aeronaves.

Uma lata de Coca - Cola a cada meia hora. Devemos ter ido ao banheiro umas 20 vezes no mínimo. 

Aqui fica uma observação - uma funcionária que há muitos anos trabalhava na empresa, e conhecia o Trag da época que ele ainda era lúcido, me disse que ele gostava muito de Coca-Cola e que isso o acalmaria. Santo remédio!

Em Ho Chi Minh ( Saigon ) tivemos o mesmo problema . O que um vietnamita com um atestado emitido pelo Consulado no Brasil faz de volta a sua terra natal, depois de tantos anos ? E com um brasileiro a tira colo. 

O mais interessante desta história é que ele passou a se comunicar em vietnamita, como se a vida voltasse ao seu estado natural, como mágica.

Passamos à noite em um hotel em Ho Chi Minh. Quase não dormi, estava realmente quente aquela noite e o barulho das motonetas passando em frente ao hotel. Ele também permaneceu acordado, mas talvez tivesse os seus próprios motivos. Na manhã seguinte, pegamos uma vã até Vung Tau.

A vietnamita que nos ajudou no trajeto da viagem, era irmã mais velha do dono da empresa em que eu trabalhava. Ela tinha lutado na guerra do Vietnã.

Chegamos ao vilarejo em Vung Tau. Litoral Vietnamita. Agora era aguardar a chegada dos familiares.

Não saberia descrever a emoção que senti no reencontro. Culpa do meu sangue latino, penso eu.

Antes de ir embora, ele disse “Titio” e me abraçou.( Era a forma que tinha para me agradecer).


Nunca mais soube do Sr. Trag ou retornei ao Vietnam. Mas tenho saudades  das nossas  Coca-Colas e do vai e vem das aeronaves no aeroporto.



 Fim

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